A tributação pelo regime do lucro presumido no Brasil, aplicada a pessoas jurídicas que prestam serviços de saúde, é palco de uma histórica e economicamente relevante controvérsia jurídica. O debate central reside na possibilidade de clínicas e sociedades médicas, que não possuem estrutura hospitalar própria para internação, mas realizam procedimentos complexos em ambientes de terceiros, usufruírem do benefício fiscal que reduz drasticamente as bases de cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A sistemática de apuração para a maioria dos prestadores de serviços estabelece um elevado percentual de presunção de 32% sobre a receita bruta para a determinação das bases de cálculo de ambos os tributos. Contudo, a Lei nº 9.249, de 1995, instituiu um regime beneficiado, no qual a base de cálculo para o IRPJ é reduzida para 8% da receita bruta e a base de cálculo da CSLL é fixada em 12% da receita bruta, aplicável aos “serviços hospitalares” e outras atividades específicas de diagnóstico e terapia.
Conceito de ‘serviços hospitalares’ e virada jurisprudencial
A controvérsia sobre a aplicação desse benefício fiscal historicamente se concentrou na definição da expressão “serviços hospitalares”. Inicialmente, a Receita Federal adotou uma interpretação restritiva, vinculando o benefício à existência de uma estrutura física própria destinada à internação de pacientes, como previa, por exemplo, o Ato Declaratório Interpretativo (ADI) RFB nº 19/2007 [1].
O Poder Judiciário foi o agente transformador desse entendimento. O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 1.116.399/BA [2], submetido ao rito dos recursos repetitivos (Tema 217), pacificou a interpretação da expressão de forma objetiva. O critério passou a ser a natureza da atividade prestada, focada diretamente na promoção da saúde, e não na estrutura física ou nas características do contribuinte (critério subjetivo).
A tese firmada pelo STJ é clara: devem ser considerados serviços hospitalares “aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde”, de sorte que, “em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar”. A única exclusão categórica estabelecida pelo STJ são as simples consultas médicas, por não se identificarem com as atividades prestadas no âmbito hospitalar.
Essa decisão representou um marco, pois desvinculou o benefício da exigência de capacidade de internação. Os regulamentos da Receita Federal que tentavam impor requisitos não previstos em lei, como a estrutura própria para internação, foram considerados irrelevantes para a obtenção do benefício.
Aceitação dos serviços em ambiente de terceiros e posicionamento da PGFN
Apesar da orientação objetiva do STJ, a Receita manteve, por um período, a restrição ao benefício para “os serviços prestados com utilização de ambiente de terceiro”, conforme disposto na Instrução Normativa RFB nº 1.700/2017 (artigo 33, § 4º, II) [3].
Contudo, essa restrição administrativa foi superada. O entendimento consolidado do STJ de que a estrutura física própria não é requisito levou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) a emitir o Parecer SEI nº 7.689/2021/ME [4]. Este parecer, dotado de efeito vinculante para a Receita, reconheceu que a tese do Tema 217 impede a imposição de limitações para sociedades que desempenham suas atividades com a utilização de estrutura de terceiro.
Portanto, o regime de alíquotas reduzidas alcança sociedades que se utilizam da estrutura de terceiro, desde que cumpridos os demais requisitos legais. A ausência de estrutura própria, por si só, não pode ser um empecilho, pois o parâmetro legal é a natureza do serviço (assistência à saúde) e não os gastos de estruturação do contribuinte.
Requisitos cumulativos para fruição do benefício
Para que a sociedade médica, mesmo atuando em ambiente de terceiro, faça jus ao benefício, é crucial atender a três requisitos de natureza cumulativa, impostos pela Lei nº 9.249/1995, em sua redação alterada pela Lei nº 11.727/2008:
1. Natureza hospitalar do serviço: a atividade deve ser voltada diretamente à promoção da saúde e se vincular às atividades desenvolvidas pelos hospitais. Isso inclui procedimentos que extrapolam a mera consulta médica, como cirurgias, diagnóstico por imagem, e atividades previstas nas Atribuições 1 a 4 da Resolução RDC nº 50/2002 da Anvisa [5] (atendimento ambulatorial, hospital-dia, internação e apoio diagnóstico/terapia). Caso a empresa exerça atividades diversificadas, a redução de alíquota aplica-se apenas sobre a parcela da receita bruta proveniente da atividade específica de natureza hospitalar.
2. Organização sob a forma de sociedade empresária: a partir de 2009, a empresa deve estar organizada sob a forma de sociedade empresária. Não basta o mero registro formal na Junta Comercial; é imprescindível que a sociedade esteja organizada de fato e de direito, exercendo profissionalmente atividade econômica organizada com alocação de fatores de produção, suportando custos diferenciados da simples prestação de serviços pessoais pelos sócios. A Sociedade Limitada Unipessoal (SLU) preenche o requisito formal, desde que comprove esse elemento de empresa. Este requisito exclui expressamente as sociedades simples e os empresários individuais.
3. Atendimento às normas da Anvisa: o contribuinte deve comprovar o atendimento às normas sanitárias. No caso de serviços prestados em ambiente de terceiro (hospitais ou clínicas parceiras), a prova deve recair sobre a regularidade sanitária deste local, mediante a apresentação de alvará de funcionamento ou licença sanitária expedida pela vigilância sanitária estadual ou municipal.
Expressiva relevância econômica do enquadramento
A discussão jurídica sobre a equiparação hospitalar possui uma relevância prática inegável, refletindo em uma economia tributária substancial para os prestadores de serviço. Para ilustrar o impacto, consideremos uma empresa médica optante pelo lucro presumido, que aufere uma receita bruta trimestral de R$ 90 mil.
No cenário 1 (tributação como serviço geral), aplica-se o percentual de presunção de 32%. A base de cálculo para IRPJ e CSLL seria de R$ 28,8 mil (R$ 90 mil x 32%). Aplicando as alíquotas de 15% (IRPJ) e 9% (CSLL), o IRPJ devido seria de R$ 4.320, e a CSLL seria de R$ 2.592,00. A Carga Tributária Total, apenas de IRPJ e CSLL, atingiria R$ 6.912 no trimestre.
No cenário 2 (tributação como serviço hospitalar), o IRPJ incide sobre 8% da receita bruta, e a CSLL sobre 12% da receita bruta. A base de cálculo do IRPJ seria de R$ 7.200 (R$ 90 mil x 8%), resultando em IRPJ de R$ 1.080. A base de cálculo da CSLL seria de R$ 10.800 (R$ 90 mil x 12%), resultando em CSLL de R$ 972,00. A Carga Tributária Total cairia para R$ 2.052 no trimestre.
A diferença entre os dois cenários é notável. O direito à equiparação hospitalar gera uma economia trimestral de R$ 4.860, representando uma redução aproximada de 70,3% na carga tributária de IRPJ e CSLL. Anualmente, essa economia pode somar R$ 19.440, sem considerar a possibilidade de pleitear judicialmente a recuperação dos valores pagos a maior nos últimos cinco anos, devidamente atualizados pela taxa Selic.
Segurança jurídica e estratégia fiscal
A superação do critério subjetivo, que exigia estrutura física própria para internação, consolidou a interpretação objetiva do conceito de “serviços hospitalares”. O entendimento da PGFN, vinculante para a Receita Federal, reforça a segurança jurídica de que a prestação de serviços médicos de natureza hospitalar em ambiente de terceiros é plenamente compatível com o benefício fiscal.
Os requisitos para a fruição do benefício são cumulativos e exigem uma comprovação robusta. A empresa deve demonstrar cabalmente a natureza do serviço (excluindo-se consultas), a correta organização societária como sociedade empresária (com o elemento de empresa devidamente comprovado), e a regularidade sanitária do local onde o serviço é executado (seja próprio ou de terceiro).
Em face da pacificação jurisprudencial do STJ (Tema 217) e do alinhamento administrativo recente da PGFN (Parecer SEI nº 7.689/2021/ME), vê-se que, atualmente, é plenamente possível garantir o direito à aplicação dos percentuais reduzidos (8% IRPJ e 12% CSLL). Em alguns casos, também é possível assegurar a recuperação do indébito fiscal. A questão, que já foi um foco intenso de litígio, hoje se assenta em critérios bem definidos, conferindo previsibilidade e relevância financeira estratégica às sociedades médicas organizadas.